Como a bateria das torcidas argentinas revela a história oculta de um país que pensa que é branco

Casos de racismo acontecem entre torcidas enquanto os mesmos grupos entoam ritmos negros e indígenas nas arquibancadas.

por Victor Belart | 9 de June
Como a bateria das torcidas argentinas revela a história oculta de um país que pensa que é branco
Getty Images

Nos últimos anos, ficou cada vez mais comum jogadores negros – especialmente do Brasil e da Colômbia - sendo vítimas de racismo nos torneios da CONMEBOL. Muitas vezes, essas manifestações acontecem provocadas por torcedores que, ao redor do continente e especialmente na Argentina, entoam, sem saber, uma musicalidade negra e indígena na bateria de suas torcidas.

Para explicar isso é preciso entender o fenômeno da cultura “barra”, conhecida no Brasil como "barra brava", termo visto como pejorativo e que não é necessariamente aceito por pesquisadores argentinos. As barras, que surgiram na Argentina na segunda metade do século XX e se popularizaram por todos os países da América Latina, utilizam uma composição musical que normalmente mescla instrumentos de sopros das marchas militares ao “bumbo de murga”, instrumento típico do Carnaval e das marchas políticas nacionais. Esse instrumento foi importado por torcidas brasileiras, figurando inicialmente no Sul e, atualmente, no restante do nosso país.

torcida argentina na Copa
Torcedores argentinos na Copa do Mundo. Juan Mabromata/AFP

Nicolás Cabrera, antropólogo que escreveu sua tese de doutorado sobre a barra do Belgrano, conta que o bumbo tem uma história forte com os trabalhadores do peronismo, além do Carnaval dos subúrbios, e possui uma ancestralidade de percussão que foi apagada no país. Este instrumento e o ritmo da murga, assim como o candombe em versão argentina, o quarteto, o tango e a milonga, vão todos ter atravessamentos com culturas indígenas, árabes ou africanas.

Segundo o pesquisador, não por acaso, tudo na Argentina com origem popular recebeu historicamente o rótulo pejorativo de “negro”, significado que vem sendo subvertido por movimentos sociais e até por algumas torcidas. A realidade é que parte da tradição da cultura argentina não vem da Europa. O Carnaval mais famoso do país vem do norte, com atravessamentos indígenas. Também do norte do país e com traços indígenas vem uma de suas cantoras mais conhecidas, Mercedez Sosa, oriunda de Tucumán.

Na final da Copa Sulamericana de 2019, o grupo de cumbia “Los Palmeras”, de Santa Fé, proporcionou uma cena típica da cultura popular argentina com as arquibancadas cantando emocionadas uma canção com traços negros e indígenas. A pesquisadora Mercedes Liska, professora da Universidade de Buenos Aires e que esteve recentemente no Brasil, conta que até mesmo o tango argentino, visto hoje como ritmo sofisticado de clubes de elite, foi usado pelo governo em um processo de "modernização". Isso ocorreu no início do século XX, quando reformas urbanas fizeram Buenos Aires tentar parecer com Paris, assim como ocorreu no Rio de Janeiro.

grupo los palmeras
Grupo Los Palmeras na final da Copa Sul-Americana. TycSports

É claro que o racismo é uma questão que invade todos os países do continente e em cada um deles há violências específicas e formas de apagamento. Mas, na Argentina, enquanto entoam ritmos de tradição negra e indígena, muitos torcedores não se reconhecem no lugar de onde vieram. Outra prova disso é que, há pouco tempo, o presidente Alberto Fernandez deu uma declaração dando a entender que o povo argentino veio da Europa. Enquanto isso, nas “Villas”, nas murgas, nos tangos e nos estádios, uma população entoa ritmos e utiliza instrumentos tradicionais de um passado escondido que a sonoridade do presente ainda não deixa se apagar.