O senso de pertencimento é uma das coisas mais importantes no futebol. As cores, os nomes, os símbolos, os estádios, tudo isso constrói as identidades dos clubes e das torcidas, e fazem parte da história do esporte. Sem identificação não há torcedor, e sem torcedor não há futebol.
A criação desses vínculos e o fortalecimento dessas identificações passa muito pela vivência de estádio, que em si já é um espaço coletivo de expressão de emoções. Com a mudança para uma nova casa, esse senso de pertencimento leva um certo tempo para ser desenvolvido. Quem está vivendo isso de perto é a torcida do Atlético.
O Galo inaugurou o seu novo estádio, a Arena MRV, em abril deste ano, e recebeu seus torcedores para o primeiro jogo em agosto. Desde então, os alvinegros estão se adaptando ao novo território e, para facilitar esse processo, um grupo decidiu usar uma das expressões artísticas urbanas mais conhecidas do mundo: o grafite.
Para entender mais desse movimento, eu troquei uma ideia com o Felipe Arco, um dos responsáveis por organizar a ação no bairro Califórnia, onde está situado o estádio do clube.
"O grafite faz parte da cultura hip-hop e foi essencial pra eu mudar minha visão de mundo, minha visão de rua."
Mineiro, atleticano, frequentador de estádio desde criança, grafiteiro há 15 anos e escritor, Felipe costuma juntar as coisas que ama para fazer as suas artes. Além de pintar os seus versos nos muros das cidades que passa, ele mobilizou outros artistas para dar uma nova cara para o entorno da Arena MRV na tentativa de fortalecer a identidade alvinegra no lugar.
"A gente jogou quase a vida toda no Mineirão, então agora (com a mudança para a Arena MRV) a gente está passando por aquela fase, né?! É como mudar de casa, mudar de escola, tudo é muito estranho, tudo é muito novo. A gente sentia que o entorno ainda não tava com a cara do estádio, então a gente quis dar essa cara, deixar o bairro mais alvinegro pra quem passar sentir o novo amor, a nossa paixão pelo clube."
O Felipe ainda conta que essa ideia nova já vinha sendo debatida pelos torcedores, mas coube a ele, com a ajuda do tatuador Thiago Scap, dar o pontapé inicial do projeto. Com a ajuda do 1908 stickers, um grupo que produz e vende adesivos do Galo, eles abriram uma vaquinha e arrecadaram pouco mais de R$ 20 mil em uma semana para a compra dos materiais necessários para os grafites; além disso, também se mobilizaram para conseguir a autorização dos moradores do bairro para que as pinturas fossem feitas nos muros das casas.
Foi então que mais de 50 grafiteiros se juntaram e pintaram, de forma simultânea, dezenas de muros no entorno do estádio em um projeto que ficou conhecido Califórnia Atleticano, ou Califórnia, o bairro mais atleticano do mundo. Imagens de jogadores icônicos do clube, de torcedores ilustres, das taças conquistadas, do escudo, de galos de diferentes tamanhos e formatos, frases de músicas da torcida, do hino e outros elementos que mostram a "atleticanidade" da torcida.
"O grafite, o grafiteiro, sempre teve isso de marcar território, de falar 'eu estive aqui, eu estou aqui, essa é a minha forma de ver o mundo, esse é o meu pensamento, esse é o meu time', e as torcidas também têm isso de querer marcar o seu lugar. A torcida e o grafite se encontram nessa ideia de marcar território, de mostrar força."
Para Felipe, esse movimento artístico de deixar o espaço com a cara alvinegra se tornou ainda maior por ter conseguido unir a torcida que, segundo ele, passa por "divisões relacionadas a pensamentos políticos, sobre a SAF e outros assuntos do clube". Além das doações para a compra dos materiais, torcedores de todas as idades foram ajudar quem estava grafitando, levando água para que se hidratassem e até pintando partes de alguns desenhos.
"A torcida do Atlético passa por divisões em pensamentos políticos, em pensamentos de saf, então essa também é uma forma de unir os torcedores em um só sentimento, em um só movimento."
Por outro lado, ele revela um temor com a possibilidade de que os torcedores do Cruzeiro, pela rivalidade, estraguem os grafites. Pensando nisso, Felipe disse que antes de começar eles tiveram a preocupação de pensar e fazer os trabalhos com imagens e mensagens que exaltassem o Atlético e a sua história, sem nenhum tipo de ataque ao rival.
"Eles têm vários grafites no Barro Preto, onde fica o clube social deles, e são grafites que falam da história deles, não grafites que nos criticam, e a gente nunca estragou, então a nossa expectativa é de que eles também não estraguem os nossos. Existe um código de ética entre a galera do grafite, existe um respeito, e a gente espera que esse respeito seja cumprido."
O movimento foi reconhecido pelo próprio Atlético, que fez publicações destacando os grafites e a ideia de tornar o bairro ainda mais atleticano através da arte urbana. Felipe ainda disse que a ideia é que o Califórnia Alvinegro continue espalhando as cores e a paixão dos torcedores nas redondezas pelos próximos tempos, ajudando a fortalecer a sensação de pertencimento e familiaridade que um lar pode proporcionar.
Dá uma olhada em alguns grafites feitos no bairro: